quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A pomba e o gato

Quando se encontraram não sabiam que existem mundos que não se tocam. Suspeitavam de afinidades e atraídos por aquilo que então os mataria decidiram coisas que não têm nome. Não se encontraram, porque já há muito que estava decidido o encontro. Era como se tivessem esperado, como se sempre estivessem estado à espera e nem fossem precisas as palavras que usamos no início. Antes da voz, era o sangue. Antes do abraço, era a pele.
Viviam nos olhos um do outro e, durante algum tempo, a urgência de se tocarem era maior do que o medo. O gato, impaciente, rondava, roçava na perna do desejo, miava alto, procurava território. O gato não sabia que do outro lado estava uma pomba. E que na lei da Natureza o gato come a pomba. Mas o gato apaixonou-se pela pomba, pelos voos altos, pela paz e pelo branco da madrugada. A pomba girava no céu e caminhava ao lado dos humanos sem os temer, quase os gostando. O gato, fingidor, não obedecia a regras e às vezes mordia a mão de quem tentava um carinho. A pomba olhou o gato e nos segundos que ditam uma inteira vida não acreditou. Quando o gato passou, a pomba abriu asas e fugiu. Sempre que o gato se aproximava, tentando um chão para os dois, a pomba afastava-se. E, do alto, num parapeito de pedra, ela olhava o gato já com o coração cheio de medo. Esse medo que nasce das coisas que não se percebem. Como é que pode ser o amor de um gato e de uma pomba?
Não podia. Mas o gato, marginal, acreditava que sim. Ele não tinha ainda reconhecido no outro animal uma pomba. Apaixonara-se pela liberdade do voo, pela calma contida na paragem. Amava já as asas da pomba. O gato não sabia que os mundos dos dois eram tão distantes quanto o céu da terra. Por isso, o gato saltou.
Nesse dia, a pomba não fugiu. Descreveu círculos no chão, olhou o gato nos olhos e seguiu o felino. A pomba não acreditava mas, num repente, queria ter quatro patas e uma cauda. O gato não sabia, mas ansiava pelas asas que nunca tivera para poder conhecer o mundo do seu amor. Os gatos não têm asas. As pombas precisam de céu.
Enquanto durou o tempo que lhes estava destinado, o gato tentou fazer da pomba gato e a pomba tentou mostrar ao gato a claridade do dia. O gato perdia-se na noite e muitas vezes o seu miar era como um uivo. Incompreendido, assustado com o possível voo da pomba, o gato começou a cercar a ave. E o abraço era tão apertado e confuso, que o gato foi arranhando a amada. Primeiro partiu-lhe uma asa, depois arrancou-lhe uma pena. A pomba, partida, olhava para o azul e para o branco das nuvens e tinha medo de um dia deixar de voar. O gato tinha descoberto que ela era uma pomba e ela percebido que o gato nunca poderia voar.
Às vezes, a pomba desaparecia. Ficava longo tempo no céu, mas quando olhava para baixo, via o gato de encontro aos passeios, magro de fome do amor que lhe tinha, doido das asas com que não nascera. Condoída, a pomba descia à terra. E o gato arrancava-lhe mais uma pena da asa. Foi assim durante muito tempo. Até a pomba ficar moribunda e descer ao chão. O gato olhando o seu amor partido, deitou-se ao lado da pomba e, esperou com ela, pelo fim. E descobriu, já tarde, que o medo também pode matar.

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