domingo, 6 de Dezembro de 2009
Pára tudo. Esperem lá. A ver se percebo. Mãe, quantas vezes me contaste tu a história de quando o pai sofreu aquele acidente e pregaram-lhe o tal número da morgue e afinal eis que o pai não morrera e tudo ria à volta e por isso lhe chamavam "morto-vivo". Esperem lá. Pára tudo. A ver se entendo. Quantas vezes não me mostraste tu, pai, os estilhaços que tinhas na cabeça, os que não te tiraram, trinta e cinco anos no teu escalpe, esses montinhos de vidro debaixo do teu cabelo castanho e depois grisalho. As tias contavam a história. Todos ríamos - tu rias ainda mais. Dizias-te invencível. Esperem lá. A ver se acredito. Quantos acidentes de automóvel tiveste tu, ainda o ano passado voou-te um camião por cima, esmagou o carro e tu preocupado com os óculos afinal não os partiste e arreliado com o telémovel e os diabetes que dispararam, "Estou bem, filhota", a rir, a contar outra vez a história do "morto vivo". E a plataforma no rio, dois, três homens à água, desapareceram, menos tu, o único que se agarrou ao ferro.
Pára tudo. A ver se não estou enganada. Então e daquela vez em que foste ao armazém, foi há uns oito, nove meses, pai? Caiste desamparado, sangue na cabeça, desmaiaste, deram por ti esticado no chão, do outro lado da linha rias-te. Então e o tal bruxo dessa África onde nasceste e a lenda da cruz que trazias desenhada na pele, de nascença, como se tivesses vindo ao mundo já protegido, o tal bruxo que dizia que ias morrer muito, muito velho. Pára tudo já. Porque não tarda ponho-me a gritar. E da última vez que estivemos juntos, baixaste os olhos e falaste no dia em que a tua mãe, para cima de noventa, te ia morrer nos braços. Porque até tu sabias que ias morrer daqui a tanto tempo que na altura estaríamos já todos à espera.
Pára tudo. A VER SE PERCEBO.
Morres-me assim?
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