terça-feira, 19 de outubro de 2010

(do Verdade ou Veneno) Meu amigo

segunda-feira, 19 de Outubro de 2009

Quando perdi o meu pai (e note-se que eu não o perdi, deixei foi de o ver, ou antes, vi-o calado e mudo, sem que sorrisse e, para mim, a morte dele é não o olhar sorrindo-me), dei-me conta então daquilo que ele foi toda a vida para mim.

O meu pai foi o meu maior amigo. Não, não estão a perceber. Eu sou mulher, ele era um homem. Éramos os maiores amigos. Numa das alturas da sua vida o meu pai de olhos castanhos e índios, cabelos ondulados e grisalhos (já só me lembro do cabelo grisalho), o meu pai de riso aberto e maneira calma, fazia viagens para a Suíça. De carro. De carrinha. Vinte e duas horas quase non stop, estrada imensa à frente, uma lancheira, duas ou três paragens para ir à casa-de-banho. Meia-hora de sono numa qualquer estação de serviço. Não havia o euro. E eram os francos e as pesetas e tudo divididinho numa carteira preta pesada. O meu pai. Tão esperto e português. Foi uma vez, não se enganou, foi dezenas de vezes, nunca se acidentou.

Perto do Natal, houve um dia, em que decidi ir com ele. No meio da neve e do frio e da chuva ouvíamos rádio e eu ainda me lembro das canções e ele cantava comigo e perguntava-me tantas e tantas coisas e falava do atrelado que levava preso à carrinha e mostrava-me placas e dizia dorme e dizia come e dizia estás bem o meu pai que me amava tanto tanto e que era o meu maior amigo.
Éramos companheiros.
Dormíamos a sesta juntos, tínhamos uma brincadeira que eu inventei e que ele nunca mas é que nunca se esqueceu: se fosse quinta então não estávamos a dormir a sesta mas a quinta e por aí fora e ele guardava o melhor lugar da cama para mim e a melhor parte do bife e foi (e é) o único adulto que eu conheci que JAMAIS se chateou ou chatearia se eu pedisse um sumo no café e depois não bebesse nem uma gotinha. O meu pai podia ter 100 escudos na carteira e ter gasto os 100 escudos na bebida que eu não bebera que JAMAIS ficaria zangado com isso.

Na faculdade passava de madrugada por Coimbra e dizia, à sexta-feira, "Vens com o pai?", e eu dizia que não, porque queria sair à noite, beber copos, namorar. Ele ia embora e deixava-me dinheiro para essa noite e ia para casa e contava uma treta à minha avó. Mentia por mim. Safava-me.

E ria-se de todas as coisas que eu dizia e tirar-me-ia da prisão ainda que eu tivesse morto alguém. Eu conhecia os segredos dele e era a única pessoa que sabia exactamente quanto dinheiro ele tinha e se a história que estava a contar era realmente assim.

Éramos os maiores amigos.

Este era o meu pai.

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