"Não posso, tenho a minha filha doente". Ouvia-o dizer ao longe, era da porta da rua, alguém que o chamava. Ouvia-o entre a febre e o suor em gotinhas na testa, debaixo do cobertor castanho, de boca encostada ao lençol de flanela feito à justa e à medida da cama que o avô comprou. "Não posso, tenho a minha filha doente", e nenhuma dor aguda no ouvido, os graus que subiam em flecha e que faziam o meu corpo doer, a sopa que não comia, os olhos que piscavam quentes e ardiam, nada mais me importava. O pai chegou. O pai não vai. O pai está aqui. "Então filhota?", ele ao pé da cama já, os beijos dele, a mãos ossudas, os dedos a cheirar a tabaco, o sorriso gigante, as rugas, na testa, de preocupação. "Não posso, tenho a minha filha doente". A perna e a barriga que doíam, as noites acordada à procura de um sono qualquer, o tecto do quarto azul a engolir-me toda, a mana a acordar e a ir para a escola. Os barulhos da casa a serem nada, a solidão a evaporar-se, as chaves do pai em cima da cómoda e o isqueiro e o tabaco pousados. "Não posso, tenho a minha filha doente".
Quando o corpo me dói, estou sempre à espera que tu chegues, pai.
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