segunda-feira, 21 de maio de 2012

O amor debaixo dos meus pés

Nunca os ouvi discutir. Nunca os ouvi rir. Quando me mudei, viviam no rés-do-chão. Ele ouvia música estranha a horas em que o som só poderia servir, achava eu, para disfarçar o barulho de amantes. Acho que estava enganada. Ela estendia a roupa na corda, tantas cuecas de enfiada e eu aprendia que as relações entre as pessoas são mesmo diferentes e a minha a mais esquizofrénica de todas. Nunca os ouvi discutir. Nunca os ouvi rir. Viviam juntos pela primeira vez em casal. Convidavam os pais e os avós. Ela dizia nos jantares no quintal: “Então mas conte lá como era a sua vida em criança”. Às vezes parecia que eram casados. Há muitos anos. E era bom. E era mau. Parecia-me, feitas as contas, bom. Andavam de bicicleta, compraram duas iguais. Ele decidiu fazer uma feira de livros usados, já não tinham espaço em casa para os livros dele. Um dia ele começou a tocar piano. Ele ou um amigo dele. Tocavam, um ou outro, muito mal. Foi lá passar férias um casal. Com um filho pequeno. Falavam castelhano. Ele ouvia música estranha, já disse? Ela estendia roupa na corda e ia a concertos com as amigas. Colavam recados tão bem escritos, a computador, muito direitinhos, nas paredes do prédio: “Hoje vamos fazer um churrasco”, “Hoje vamos ter um jantar”, “Hoje vamo-nos juntar todos nos jardins”, coisas assim, de vizinhos a serem felizes a viverem juntos pela primeira vez a serem grandes assim como os pais e os avós. Achava bonito. Nunca os ouvi discutir. Nunca os ouvi rir. Houve um dia em que ela passou com um saco na mão, um mundo de desilusão no olhar. O tecto da minha sala caiu e eu desci ao rés-do-chão para pedir o contacto do senhorio. Ele, que ouvia música estranha, não abriu a porta. A música calou-se. Mas ele estava lá, que eu sei. Subi. Fiquei à espera de um papel colado na parede “Hoje vamos terminar a nossa relação e sair de casa”. Não houve papel. Levaram as bicicletas, falaram um bocadinho mais alto por causa das coisas do jardim. E foram. Deixaram a mangueira, as flores, os vasos, as luvas do churrasco, o grelhador, o tapete de entrada. Desistiram como se fugissem. Um berro, um mar de lágrimas, três ou quatro acusações. Teriam bastado. Mas, é como eu dizia, nunca os ouvi discutir. Nunca os ouvi rir.

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